O Dia do Índio, celebrado no Brasil em 19 de abril, foi criado pelo presidente Getúlio Vargas, através do decreto-lei 5540 de 1943, a comemoração pode camuflar a realidade das nações tradicionais que aqui já estavam quando Pedro Álvares Cabral desembarcou em Porto Seguro, no dia 22 de abril de 1500.
Mas como é que um indígena percebe a história que nos é contatada todo dia 19 de abril? Com este intuito, o Conversas Sábias encontrou o escritor nativista Olívio Jekupé, na primeira semana de abril, que conversou com os alunos da Rede Camões, pelo meet, e deixou claro, no seu ponto de vista, que toda cultura brasileira tem origem indígena.
Entre suas afirmações marcantes, destaque para: Quando os portugueses chegaram aqui em 1500, eles não trouxeram marmitex, tiveram que se adaptar ao que o índio fazia. Então, toda a cultura brasileira é nossa e eles nos desvalorizaram até hoje. A condição da sociedade é sempre desvalorizar o índio, porque o índio não é ninguém, o índio é atrasado, primitivo e não pensa, criticou Jekupé. Descubra mais nessa entrevista especial:
Leia na íntegra a entrevista:
Rede Camões: Olá, meu nome é Gabriela, do Jornal Darwin e a minha pergunta é: Qual é o maior erro histórico que é ensinado as crianças sobre os índios?
Olívio Jekupé: Na verdade, é difícil falar qual é o maior, pois é uma pancada de erros. Um deles, por exemplo, é que as pessoas nos confundem, nos perguntam: de onde viemos? Quem deveria fazer essa pergunta era nós. Eles nos tratam como se nós fossemos o estrangeiro. É preciso que o brasileiro entenda que nós é que somos originários daqui e essa é uma conclusão que deve ser repassada para as crianças.
[…] porque até os livros de história do Brasil são preconceituosos, eles escrevem coisas que não fazem parte da nossa realidade, por exemplo, José de Alencar escreveu sobre o Guarani, e a gente lê o livro e não vê a realidade ali dentro. Ele criou uma ficção, fazendo com que a sociedade conclua que o guarani é igual ao que o José de Alencar apresenta.
Outra coisa muito grave é que, as vezes, nos perguntam se comemos gente até hoje e por quê? Porque os Bandeirantes passaram a vida inteira matando os índios e falando mal dos povos indígenas, fazendo com que a sociedade pensassem mal do índio, concluindo que “O índio come gente” e explicamos que não é verdade, que é invenção, não existe ninguém que come gente, até nos livros de história onde falavam que haviam várias tribos canibais, isso é ficção!
Outro ponto onde eles falam absurdo é quando visitam as aldeias e questionam se casamos irmão com irmão. O que é um erro absurdo, já que nós, indígenas, somos todos irmãos. Então, de vez em quando, as pessoas confundem e pensam que somos irmãos sanguíneos. Não, não somos! Sabemos a diferença de quem é parente. Outra coisa gravíssima é chegarem na aldeia com aquela noção de que todo índio fala tupi-guarani. Não, o índio não fala tupi-guarani. No Brasil, existem 350 nações diferentes uma da outra, então cada nação tem sua língua, seguindo essa língua, ela tem seus costumes, suas tradições. Então, se você chega em uma aldeia Xavante, as pessoas vão perguntar para o Xavante se ele fala tupi-guarani e o Xavante tem que explicar que ele não fala tupi-guarani e sim: xavante.
Porque os Bandeirantes passaram a vida inteira matando os índios e falando mal dos povos indígenas, fazendo com que a sociedade pensassem mal do índio, concluindo que “O índio come gente”
As pessoas confundem muitas coisas, por isso é importante estarmos sempre falando com o público para que eles entendam como é o mundo indígena, porque as pessoas no Brasil não conhecem. Temos 210 milhões de pessoas no Brasil e 99% dos brasileiros nunca foram em uma aldeia. Isso faz com que eles criem ficções e , assim, aumentando o preconceito.
Por isso, é sempre bom sermos convidados para dar palestras para ir tirando esses preconceitos e também os livros de escritores indígenas. Eu comecei a escrever em 1984, pois eu tinha essa intenção e falava para às pessoas que temos que escrever um livro para escrevermos de uma forma diferente, porque até os livros de história do Brasil são preconceituosos, eles escrevem coisas que não fazem parte da nossa realidade, por exemplo, José de Alencar escreveu sobre o Guarani, lemos o livro e não vemos a realidade ali dentro. Ele criou uma ficção fazendo com que a sociedade conclua que o guarani é igual ao que o José de Alencar apresenta.
[…] às pessoas não tem noção, chegam na aldeia e acham que vão nos encontrar pelados, então tentamos explicar que não é assim a realidade.
E o índio na aldeia vive diferente de forma que ele fala, por essas coisas serem problemáticas, eu comecei a escrever em 1984 e até os dias de hoje estou escrevendo, inclusive quero lançar um livro esse ano, um romance chamado “História de Cairus”, um livro muito bom, meu primeiro romance, em maioria são contos e poesias, mas quero lançar um romance para tentar mostrar uma realidade indígena, porque as pessoas não tem noção, chegam na aldeia e acham que vão nos encontrar pelados, então tentamos explicar que não é assim a realidade.
As conclusões vem desde 1500, as pessoas vão passando coisas sem nunca ter ido na aldeia, portanto sempre falo que o surgimento dos escritores foi muito importante porque temos livros, hoje, publicados, e esses livros chegando na mão de professores, eles terão uma base melhor para comentar sobre a questão indígena. São muitas coisas, se são 350 povos, como você vai falar uma coisa genérica de todos? Inclusive, eu tenho um filho que é considerado internacionalmente, é cantor, compositor, escritor, tradutor, toca violino e violão e tem dois filmes na Europa, dois livros publicados e também é cantor de rap, e agora, 19 de abril, ele vai passar, depois da novela da Globo, um documentário indígena onde ele estava falando sobre o seu rap, então o rap também foi uma forma que começamos a perceber que os jovens estavam se interessando, surgindo assim os índios cantando também para usar como uma forma de defesa, porque a sociedade tem que aprender a história do indígena através do próprio indígena, então a gente pode escrever uma literatura nativa assim como ter os nossos jovens cantando rap.
[…] a sociedade tem que aprender a história do indígena através do próprio indígena

Rede Camões: Olá, meu nome é Paulo, eu sou da escola Zita de Godoy Camargo, eu pertenço ao Jornal dos Camões e gostaria de te perguntar qual é a importância de se preservar a cultura indígena?
Olívio Jekupé: Veja só, a cultura indígena, nas várias nações do Brasil, tem, primeiramente, que ser respeitada, porque é um direito nosso de vivermos do nosso jeito, com nossa língua, nossos costumes, formas de pensar, forma de se alimentar, a forma de dormir, tudo o que a gente vive na aldeia é um direito nosso, então as pessoas têm que entender que somos gente assim como eles. O índio não vai ditar as pessoas como viver, nunca fizemos isso, mas o povo da cidade tem aquele costume de falar essas coisas.
Sempre falo que primeiro tem que respeitar a gente, segundo, quando se fala da cultura, a primeira coisa que o brasileiro tem que entender é que eles vivem a cultura indígena também. Então, ele deve respeitar a vida dele, assim como nos respeitando também. O brasileiro vive em cima da cultura indígena e acha engraçado quando chega na aldeia e começa a ver o índio fazendo a mesma coisa que o branco faz.
Quando você vai no interior de Rio Claro você vai encontrar as pessoas brincando de bolinha de gude, de onde vem a bolinha de gude? Copiou do índio. O brasileiro tem costume de andar pelo Brasil e ver as pessoas comendo pamonha, de onde vem a pamonha? Do índio. Você vai na cidade e tem um pipoqueiro vendendo pipoca, de onde vem a pipoca? Do índio. Você vai em um restaurante em qualquer lugar do Brasil e a primeira coisa que você vê lá é uma panela com farinha de mandioca, de onde veio a farinha de mandioca? Do índio. Você vai nos bares e quem não gosta de Coca Cola vai querer beber Guaraná, de onde vem a guaraná? Do índio. Você vai na cidade e encontra pessoas que são apaixonadas por tapioca, de onde vem a tapioca? Do índio. Você vai nas escolas e as crianças estão brincando de peteca, de onde vem a peteca? Do índio. De onde veio o amendoim? Do índio. Os gaúchos ficaram conhecidos por tomar chimarrão, de onde vem o chimarrão? Do índio, mas os gaúchos falam que é deles, não é? Não falam que é nosso, então os europeus quando vem para o Brasil a primeira coisa que eles querem é conhecer o churrasco, de onde veio? Do índio.
Sempre falo que primeiro tem que respeitar a gente, segundo, quando se fala da cultura, a primeira coisa que o brasileiro tem que entender é que eles vivem a cultura indígena também.
Então todas essas coisas fazem parte da cultura que roubaram da gente ou, então, adaptaram, porque quando os portugueses chegaram aqui em 1500 eles não trouxeram marmitex, tiveram que se adaptar ao que o índio fazia. Então, toda a cultura brasileira é nossa e eles nos desvalorizaram até hoje. A condição da sociedade é sempre desvalorizar o índio, porque o índio não é ninguém, o índio é atrasado, primitivo e não pensa. Agora, veja só, quando você vai na farmácia e vê um monte de remédios e pode tirar qualquer remédio daquele que não verá o livro onde diz que o cientista retirou, pois a maioria dos remédios que estão lá foram todos explorados pelos povos indígenas, mas ninguém valoriza.
[…] quando os portugueses chegaram aqui em 1500 eles não trouxeram marmitex, tiveram que se adaptar ao que o índio fazia, então toda a cultura brasileira é nossa

Rede Camões: É bem legal isso, por tudo o que o senhor falou me fez entender que toda a economia brasileira foi fundada pelos indígenas e ninguém reconhece isso, não é? Muito interessante. Sou o Davi de Souza Arnaud, participo da Rede Camões e sou o editor do Jornal Clarisse Lispector, e a minha pergunta para o senhor é como que o Coronavírus afetou as aldeias? Afetou muito? Totalmente? Mudou a rotina de vocês?
Olívio Jekupé: Então, quando o governo do Estado de São Paulo bloqueou tudo por conta do coronavírus, fechando também as escolas, na nossa aldeia também temos escola da prefeitura e escola do Estado, nós continuamos na aldeia porque como moramos no meio da floresta, foi tranquilo, já éramos acostumados a viver no meio do mato já que tínhamos aquele espaço gostoso porque íamos para a represa, para o campo, para as trilhas, estávamos sossegados e a gente não saia para vir para a cidade. Só que mesmo a gente não saindo, alguns que de repente precisava fazer alguma compra ou algo na cidade, acabaram contraindo e começou a passar para a aldeia. Foi criado na aldeia uma emergência igual a criada na cidade, um mini hospital dentro da aldeia para testar e ver quem estava doente para ser internado. Levamos um susto, imaginávamos que ninguém pegaria por estarmos no meio do mato, então os médicos ficavam lá vinte e quatro horas por dia e de repente minha mulher pegou e estava quase morrendo, e então pediu o chá da árvore para que pudesse tomar, eu fiz o chá e ela amanheceu boa, havia ficado quatorze dias de cama e no décimo quinto ela tomou o chá e sarou. Eu peguei dela e também fui internado, pedi para preparar o chá porque percebi que a coisa estava ficando feia, pois a gente não respira, a garganta fica ruim, já até tinha me despedido de todo mundo, mas, então, tomei o chá a noite toda e amanheci melhor, o médico até comentou que eu estava bom, mas eu não podia sair porque tinha que cumprir a quarentena.
Levamos um susto, imaginávamos que ninguém pegaria por estarmos no meio do mato […]

Rede Camões: O senhor já tinha comentado um pouco na primeira pergunta, mas a gente vai retomar agora, como que é ser um escritor da literatura nativa?
Olívio Jekupé: Então, eu fico muito feliz porque na minha época, em 1984, quando eu comecei a escrever não havia isso de autores com livros publicados, era uma coisa nova, então eu passei muitos anos batalhando até que eu comecei a publicar meus primeiros livros, foi uma luta e eu continuo na luta ainda hoje. Fico feliz de saber que os meus livros estão pelo Brasil, mas a gente não vende muito porque a questão indígena não é muito valorizada. Tenho 21 livros publicados, mas não vendem muito, isso é o triste, porque não se valoriza a literatura dos povos indígenas, mas mesmo assim continuo lutando, batalhando e divulgando, pois através disso, começou a surgir outros escritores também, inclusive na nossa aldeia eu tenho três filhos homens e os três são escritores, melhor do que eu, eles são bons, e também tem livros publicados.
É gostoso saber que os filhos estão seguindo o caminho do pai, porque eles são talentosos, eles escrevem, compõem, tocam, cantam, eu não chego nem perto dele, mas isso é bom, saber que a nova juventude também está começando a escrever e a gente fica feliz porque sabemos que as pessoas começam a valorizar o índio através do que escrevemos, porque o povo da cidade tem um costume diferente, todos moram em casinhas. Fico contente de saber que sou escritor e estou trazendo conhecimento para os professores, para a sociedade, para os alunos, então quando as pessoas forem falar bem de mim, falem do índio, agora se eu fizer algo errado, ai eles falam de uma forma generalizada que os índios são assim. E isso é um absurdo, então eu fico feliz em saber que a minha missão como escritor é tentar trazer esse conhecimento para a sociedade para as pessoas entenderem melhor, porque o que você sabe sobre o povo indígena no Brasil é uma coisa muito pequena.
Nós, como escritores temos essa missão de trazer cada vez mais conhecimento para que alcance cada vez mais o público e como estou falando com vocês hoje aqui, espero que após isso vocês procurem meus livros e divulguem nas redes sociais.
Rede Camões: Qual o recado que você deixa para a Rede Camões e todo o pessoal da rede escolar?
Olívio Jekupé: O que posso dizer é que as pessoas valorizem o nosso povo no Brasil, porque precisamos ser respeitados, pois sofremos muito preconceito e, de vez em quando, às pessoas por não conhecerem a realidade do índio é que vão passando isso adiante. Então através de vocês, que vão espalhando cada vez mais, que nós somos gente como todo mundo, temos nossos erros e também temos nossas coisas boas, por isso que as pessoas precisam entender melhor o mundo indígena. Tentem achar os meus livros, se quiserem também procurar o meu filho na internet e no youtube: Kunumin MC, ele é cantor de rap e está gravando música frequentemente e assim a gente espera que vocês procurem mais trabalhos indígena, como cantores e escritores e outros assuntos que possam alcança-los para que passem adiante.

Escute a entrevista completa em:

#9: Os Bandeirantes passaram a vida matando índios – Conversas Sábias com Olívio Jekupé – Jornal do Camões
Quem é Olívio Jekupé?

(Foto: https://revistaacrobata.com.br)
Olívio Jekupé (Novo Itacolomi, 10 de outubro de 1965) é um escritor brasileiro de literatura infantil.
Começou a escrever em 1984. Iniciou o curso de filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em 1988, vendendo artesanato para custear seus estudos. Também foi professor do ensino fundamental. Mudou-se mais tarde para São Paulo, onde retomou os estudos na USP.
Mora na aldeia Krukutu, em Parelheiros. É membro do Núcleo dos Escritores e Artistas Índigenas (Nearin) e foi um dos fundadores da Associação Guarani Nhe’en Porã.[2] Em seus livros, aproveita a tradição oral, transcrevendo histórias de seu povo.
Dois de seus livros, Ajuda do Saci e A mulher que virou Urutau, foram publicados em edições bilíngues, com texto em português e guarani.
Conheça as obras
Obras
- 2013 – As queixadas e outros contos guaranis (organização) – FTD
- 2011 – Tekoa – Conhecendo uma Aldeia Indígena – Global
- 2011 – A mulher que virou Urutau, com Maria Paulina Kerexu – DCL
- 2006 – Ajuda do Saci – Panda Books
- 2005 – Verá – O contador de histórias – Peirópolis
- 2002 – Xerekó Arandu, a morte de Kretã – Peirópolis
- 2002 – Iarandu, o cão falante – Peirópolis
Não ficção
- 2009 – Literatura escrita pelos povos indígenas – Ed. Scortecci
- 2020 – A invasão – Ed. Urutau
Kunumin MC
O talento de Kunumi, ou Werá Jeguaka Mirim, vem de família. O pai, Olívio Jekupé, é autor de diversos livros escritos em português e guarani. Werá também escreve. Seu primeiro livro foi publicado quando tinha apenas 9 anos. Conheça a sua música:
Texto de Aline Nunes dos Santos, 3ª B, Escola Estadual Zita de Godoy Camargo, Rio Claro/SP.
Bem interessante!
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Simplesmente fantástico.
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