Torna-te necessário a alguém, com essa afirmação o professor, palestrante e filósofo Mário Sergio Cortella coroou sua participação no “Conversas Sábias” da Rede Camões na última sexta-feira, dia 26 de março.
Idealizada pelo editor-chefe do Jornal Quincas Borba, Kauhan Sabino, a entrevista reuniu toda a Rede Camões de jornais escolares (Jornal Quincas Borba, Jornal do Camões e o Jornal Clarice Lispector) com representantes da Escola Estadual Marciano de Toledo Piza, da Escola Zita de Godoy Camargo e da Escola Januário Sylvio Pezzotti, ambas de Rio Claro/SP.
Cortella respondeu sobre a questão do ensino a distância, ética e filosofia e a prática da filosofia no cotidiano, ele deixou também o recado de Ralph Waldo Emerson aos alunos de escola pública. Interrogado, pelos alunos, via Meet, ele também lembrou suas passagens por Rio Claro devido sua família de ferroviários. Confira a entrevista na íntegra:
Jornal Quincas Borba: É possível ser um filósofo por EAD?
Prof. Cortella: Olha, Kauhan… a primeira forma de ensino a distância foi o livro. O livro foi a primeira forma, seja como nós temos agora em papel ou em e-book, como já tivemos em papiro, como já tivemos em pergaminho. O livro permitiu, independentemente da plataforma, que se pudesse estudar fora do presencial, de uma sala de aula. Por isso a filosofia se construiu em larga escala dentro dessa perspectiva quanto se imagina a leitura e o estudo.
Evidentemente que o ensino a distância tem a sua forma de tempo, de momento, mas ele não esgota a condição. É bastante correto que a gente seja capaz de ter o presencial como uma possibilidade. Mas em larga escala, se nós imaginamos a formação de pessoas que tiveram, ela se deu também como aquilo que agora se chama ensino a distância. Mas que já foi feito com muitas plataformas na história. Por isso, de modo mais direto, sim! É possível, não é suficiente. A convivência, a possibilidade da presença constrói outros modos de relação. Se a gente pensar na filosofia antiga grega, 2.500 anos, quando a filosofia, se dava no encontro na Ágora, na praça ou ela se dava na escola, naquilo que Platão chamou de Academia; Aristóteles chamou de Liceu, que não foram eles que chamaram, outros que deram esse nome e eles acabaram também sendo assim conhecidos. Isso significa: sim, o ensino a distância é uma possibilidade, mas não é uma exclusividade.
A convivência, a possibilidade da presença constrói outros modos de relação.
Quincas Borba: Como a filosofia está relacionada com o momento que estamos vivenciando?
Prof. Cortella: A filosofia não propõe soluções imediatas, ela já o fez, se a gente observar o nascimento da filosofia do ocidente. Ela era exatamente propositora, mais prática, haja vista que aquele que é considerado o pai da filosofia, que é Tales de Mileto, embora a palavra filosofia tenha sido criada pelo matemático Pitágoras, ele era alguém que, nos termos de agora, a gente podia chamar de um engenheiro, porque ele era capaz de propor coisas concretas naquilo que mais tarde será chamado de mecânica dentro da física. E é interessante porque a filosofia não é um saber prático, obrigatoriamente, mas tem um nível de utilidade, de relevância, de importância, a medida em que busca entender a razão e alertar para aquilo que seria a certeza sem fundamento da nossa parte.

Por isso, neste momento que nós estamos vivendo, a filosofia serve para que a gente não fique distraído ou distraída, imaginando que nós somos base de qualquer coisa, que a natureza se submete a nós, humanos e humanos, sem nenhum tipo de alteração, resistência, que nós temos de trabalhar uma concepção de vida, que seja muito mais integrativa, cooperativa, do que na lógica de “cada um por si, Deus por todos”. Por isso, a filosofia não chega àquilo que é a propositura, digamos, de uma vacina, de uma distribuição, de auxílio às pessoas, mas ela chega a um debate em relação a ética e os princípios necessários para que nós sejamos capazes de ultrapassar essa tempestade sem afundar ninguém e sem deixar ninguém pra trás. Daí a utilidade que ela pode ter pra gente refletir mais e não viver de modo automático ou robótico.
[…] a filosofia serve para que a gente não fique distraído ou distraída, imaginando que nós somos base de qualquer coisa, que a natureza se submete a nós, humanos e humanos, sem nenhum tipo de alteração, resistência, que nós temos de trabalhar uma concepção de vida, que seja muito mais integrativa, cooperativa, do que na lógica de “cada um por si, Deus por todos”

Jornal Camões: Até que ponto a filosofia se relaciona com a ética?
Prof. Cortella: Durante muito tempo a ética era uma parte da filosofia, aquilo que chamamos de filosofia como área do conhecimento envolve vários pedaços, campos e setores, por exemplo, a estética que pensamos o belo, estilo, teoria do conhecimento, metafísica entre outros. E um dos trechos mais fortes da filosofia na história sempre foi a ética, um dos debates mais fortes já feito se dirigia para a ética, boa parte da obra de Platão trazendo Aristóteles como seu aluno e Sócrates como mestre, tratam da virtude, ou seja, o que é correto para ter uma vida correta; nesse sentido, não tendo como separar a ética da concepção filosófica. A filosofia traz, dentro dela, o interesse, a pesquisa, o estudo, sobre o tema da ética.
Inclusive, uma das obras fundantes, que é a base daquilo que veio depois do ocidente na reflexão ética, é uma obra de Aristóteles chamada “Ética a Nicômaco” […] É uma obra que percorre esses mais de 2.000 anos. Daí concluo que a filosofia ética em vários momentos se identificam em outros, elas são colocadas também numa reflexão mais específica em outras áreas, mas, em larga escala, se diria que o tema da ética é um tema da filosofia prioritariamente.

Jornal Clarice Lispector: Qual recado você deixa para os alunos da rede pública?
Prof. Cortella: O recado que eu mais tenho pensado pra mim e para outras pessoas, nesses tempos difíceis que nossas gerações diversas estão vivendo, foi trazido por um filósofo norte americano nascido no ano de 1803, é um homem chamado Ralph Waldo Emerson, que nós normalmente chamamos apenas de Emerson. Ele diz algo pra você e eu, não só pensarmos como também praticarmos. Ele dizia: “torna-te necessário a alguém, torna-te necessária a alguém”, a única maneira de eu não ter uma vida banal, descartável, fútil, de eu não perder tempo na vida é eu ser necessário ou necessária. Além de mim mesmo e também para outras pessoas, por isso, o recado que eu acho que serve não para quem ouve, mas para qualquer pessoa, inclusive para quem fala é: “torna-te necessário a alguém”. Faça da tua vida uma vida que não só proteja a tua vida, mas ajude a proteger a vida das outras vidas.
Torna-te necessário a alguém!

Quincas Borba: No seu livro “Filosofia nós com isso”, tem um diálogo lá: “Que seu pai faz? Ele é filósofo. E o que ele faz?” Gostaria que o senhor comentasse um pouco sobre isso.
Prof. Cortella: A filosofia é um pensamento metódico, sistemático, organizado sobre aquilo que dá sentido às nossas coisas. Como eu gosto sempre de insistir, a filosofia não é uma ciência no sentido moderno. A ciência no sentido moderno é uma ciência experimental, comprovável ou, para usar o termo técnico, empírico. A filosofia trabalha com indagações, essas indagações em larga escala servem para impedir que qualquer pessoa vá apenas vivendo, invés de pensar também sobre a vida. Por isso, durante a história especialmente no ocidente, por muitas vezes a pessoa dedicada à filosofia, era muito bem considerada, mas, por muitos outros momentos, alguém dedicado à filosofia foi entendido e ainda o é, por muita gente, como sendo uma pessoa ociosa. Isto é, alguém que se dedica a nada fazer, que tenha utilidade, que tenha serventia. Daí que quando meus filhos eram perguntados, hoje meus netos, meus dois netos e duas netas, o que teu avô faz, ou quando era meus filhos e filha, “o que teu pai faz”, quase sempre, ao ser encontrada a resposta: “ele é filósofo ou é professor de filosofia”, perguntava de novo “mas o que ele faz?” Isto é, o que faz alguém da área da filosofia. Pode ser o que eu sou também, professor de filosofia, e eu sou há 47 anos, pode ser escritor que é o que eu faço, também pode fazer aquilo que é capacidade de fazer comentários, como eu faço no rádio e na TV. Mas também a possibilidade de compor aquilo que a gente chama de grupo interdisciplinares. Numa organização, numa empresa, que o olhar da filosofia permite que as pessoas não se contentam com respostas óbvias, que seja capaz de introduzir um pouco do que a gente chama de suspeita; que eu, em larga escala uso em minhas redes sociais, quando ao colocar alguma questão ou alguma afirmação, eu normalmente escrevo “será?”. A filosofia, para usar o filósofo que dá origem a meu primeiro livro que nem tem mais em plataforma papel, só em e-book, chamado “Descartes: a paixão pelas almas”. Vocês todos e todas olharam o Descartes de algum modo, não obrigatoriamente na filosofia, muita gente ouve mais na matemática quando estuda produto cartesiano. Uma das coisas mais curiosas, dentro do pensamento de Descartes é quando ele introduz a noção de dúvida metódica. Não a dúvida pela dúvida, não duvidar apenas pra ser insolente. Mas a dúvida metódica para, sendo capaz de perguntar-se, encontrar coisas que sejam mais certas, em vez de aceitar apenas o que as coisas aparentam ser. A filosofia é uma busca, em vários momentos, para ir em busca da busca e por isso ultrapassar as aparências.
O olhar da filosofia permite que as pessoas não se contentam com respostas óbvias.
A entrevista completa por vídeo você confere pelo YouTube:
Ou pelo podcast:
