Texto: Kauhan Sabino e Guinter Samuel, 9° C

Na “CONVERSA SÁBIA” desta semana, o CAMÕES entrevistou o cineasta João Paulo Miranda Maria, de trinta e oito anos, nascido em Porto Feliz, João Paulo morou em Rio Claro durante boa parte da vida onde organizou e ampliou as atividades do coletivo rio-clarense Grupo Kino–Olho e ficou nacionalmente conhecido com presença na premiação francesa no Festival de Cannes com o filme “Casa de Antiguidades” que traz Antônio Pitanga no papel de nordestino que enfrenta o preconceito racial no Sul do Brasil.
O drama além do importante selo de Cannes também foi uma das atrações do Festival de Toronto. João Paulo Miranda já havia recebido Prêmio Especial do Júri em Cannes, em 2016, pelo curta “A moça que dançou com o diabo”, começou a desenvolver o roteiro de Casa de Antiguidades ainda em 2015. As gravações terminaram em 2019.

Quanto mais parecer impossível, melhor é. Muita gente, independente se é rico ou pobre, são pessoas que têm sonhos medíocres…
Diz cineasta João Paulo
CAMÕES: Como o racismo é tratado em seus filmes?
JP Miranda: O filme, na verdade, não tem como mote central o racismo, mas sim a intolerância. É claro quando a gente pensa em intolerância dentro dela tem racismo, tem outros preconceito: tem a questão do machismo, tem a questão da xenofobia e também todo o movimento conservador que avança e tendendo até a um fascismo. Então, esses tópicos acabam circulando no filme “Casa de Antiguidades”. É claro que o filme foi justamente selecionado, eu estaria na seleção da competição oficial do Festival de Cannes desse ano, em maio, mas, infelizmente, por causa da pandemia, acabou não ocorrendo. E foi bem no momento do assassinato de George Floyd e toda manifestações do movimento negro e ainda calhou que o filme tenha um protagonista negro, no caso Antônio Pitanga.
Eu não o chamei por essa questão, mas sim, porque pra mim ele é a pessoa que mais representa a história do cinema brasileiro. Foi aquele que interpretou o primeiro filme do Glauber Rocha, quando ele estreou no cinema com o Barravento, assim como também Cacá Diegues, né? Vários importantes filmes do cinema novo, assim também como único filme ganhador da Palma de Ouro, único brasileiro, que foi O Pagador de Promessas. Então, ele é um pilar da história do cinema brasileiro e até também da cultura brasileira. Então, é um momento que eu queria descrever a história de um homem que eu falo caipira, né? Mas é um homem rústico que vem do interior do Brasil e que tem todo um peso da história nas costas, né, um peso de marcas do tempo e que interpretaria melhor esse povo brasileiro, pra mim eu pensei imediatamente em Antônio Pitanga. E mesmo com o desafio dos seus oitenta anos, eu acabei tomando esse desafio de chamar. Eu não imaginava um outro tipo de perfil, um personagem mais com perfil, talvez clichê de nordestino, é mais forte, todos se surpreenderam quando me perguntaram e desde o início eu imaginava o Antônio Pitanga, que não era a pessoa que a equipe ou a produção imaginava em um primeiro momento. E agora, assistindo ao filme, não tenho como imaginar uma outra pessoa no lugar…
CAMÕES: O que você nos diz sobre o que as pessoas chamam de “impossível”?
JP Miranda: Realmente, quando eu escuto as pessoas falarem pra mim que é difícil, que é impossível, eu juro, é justamente ali que eu quero trabalhar. É justamente ali que eu quero provar uma possibilidade, uma potência, um talento. Eu vejo que a beleza em si, ela está ao nosso redor, eu acho que independente da arte, no cinema, em outras artes, eu acredito que até em outras áreas se temos uma maturidade [que isso é um tempo, é o tempo que nos faz lapidar e ver as coisas de outra forma] . Quando a gente é quase uma esponja que sente muito mais ao nosso redor, observa muito mais o que tá acontecendo ali na esquina, na rua, na nossa casa, nas proximidades e a gente consegue enxergar o valor, o potencial envolta… Aí, é o momento que você consegue fazer algo diferente, você consegue mostrar que o impossível não é impossível e que nada nesse mundo é tão difícil assim.
Eu vejo que a gente em vários momentos de dificuldade, de obstáculos, nós vamos ouvir muito mais não, do que sim na nossa vida. Isso não foi diferente também pra mim. Então, eu vejo que a gente tem que se apegar realmente ao que a gente sente dentro de nós… Que é algo muito forte!
Quando as pessoas falam que é impossível, eu vou. Por exemplo, quando eu escolhi o Antônio Pitanga, as pessoas achavam, muitas delas, quase impossível: um homem de oitenta anos fazer um filme daquele, com várias cenas de ações, que exigia toda uma questão física? Então, muitas pessoas estavam fazendo homenagem, imaginando quase uma morte dele e eu o chamei para ser um protagonista absoluto. Mesmo na época do cinema novo, ele não teve essa chance. Foi o grande presente para a vida dele e ele já disse isso pra mim…
JP Miranda
É a mesma coisa na história, o que eu falo desde quando morei em Rio Claro. No interior, quando eu falava de um cinema caipira, justamente pra pegar esse lado pejorativo, que as pessoas imaginavam de uma maneira negativa e que pra mim era ali que estava a matéria bruta.
Esse impossível pra mim é uma motivação de realmente lutar por algo. Então, o que eu poderia sugerir, indicar pra qualquer pessoa é ela seguir os seus sonhos, arriscar. Arriscar mesmo, não ter medo do risco, porque realmente, para mim, eu vejo cada vez mais, que eu estou próximo de um risco, naquele momento que você acha que tá quase na beira de um abismo, é o momento que você está encontrando uma verdade.
Vejo que correr atrás de algo que parece impossível, é que isso daí tem que ser tomado como um estímulo mesmo, porque eu imagino, principalmente, aos jovens, o mais difícil, quando a gente é jovem, é saber o que a gente quer.
Então, se você não perder o seu foco com os obstáculos que vão surgir, você não perder o seu foco, aonde você quer chegar e saber exatamente o teu alvo, não vai existir problema que vai te segurar, não vai existir obstáculo que vai te impedir, você vai chegar lá, cedo ou tarde, vai chegar lá.
Meu pai já falava para não ir atrás somente do dinheiro e, sim, do meu sonho e não perder esse objetivo. Então, eu segui sempre isso. O dinheiro é uma consequência
JP Miranda
CAMÕES: Qual foi o principal motivo que você escolheu morar na França? Qual sua história com Rio Claro?
JP Miranda: Na verdade, de uma maneira acho que quase inconsciente, desde quando eu estudava cinema, estudava artes, a França sempre era uma grande referência, né? Nos movimentos como do da novela Wagner, com diretores como o Godard foi um celeiro artístico muito grande por muitos anos. Então, a França sempre foi um lugar de de valorizar e respeitar o artista. Então, eu, inconscientemente, já tinha uma ligação. Aí tanto no meu mestrado foi justamente sobre o cineasta Godard e todo movimento que ele fez no final dos anos sessenta, com o grupo dele, que ele criou um coletivo. Acabei vindo à França por um motivo prático, inicial, que foi o motivo da coprodução do longa metragem. Eu já tinha passado por causa do Festival de Canne, não é o Oscar, mas é o o único festival, assim, digamos, é um dos únicos, democráticos, você manda filme de todos os lugares. No Oscar é representante por países e existe toda uma outra questão pra chegar no Oscar. Então, eu primeiro fui reconhecido por causa dos franceses, né? Tem aquela coisa velha, né? Santo de casa não faz milagre.
Não nasci na cidade de Rio Claro, eu nasci na cidade de Porto Feliz, mas morei desde os meus dois anos de idade, até antes de vir pra cá pra França, morei toda a minha vida em Rio Claro. É uma cidade que mesmo com todos os defeitos e problemas foi aonde eu consegui fazer as coisas: criei o coletivo que é o grupo que KinoOlho. Então, Rio Claro sempre, de alguma maneira, nunca vai ter como sair da minha biografia.
CAMÕES: Desde de criança você sempre quis ser cineasta? Se não, quando o interesse apareceu?
JP Miranda: Foi na verdade com quatorze anos que eu decidi que iria ser cineasta. Foi quando eu vi 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, e esse filme mudou tudo pra mim, eu já gostava de cinema como espectador, via muitos filmes, adorava, né? Meus pais falam que desde criança eu já adorava cinema. Então, esse filme me mostrou o poder, uma força que o cinema poderia fazer, ele sugerir que para mim, assim, me motivou. A partir dos 14 anos, já comecei a querer fazer filme, queria motivar a galera da minha classe, tentar filmar, naquela época não tinha essa coisa de celular com câmera. Tentei convencer produtoras que faziam casamento pra tentar fazer de forma gratuita, parceiros e tal, fazer filme. Então, na época, fui atrás disso pra conseguir. Então, eu não medi esforços pra tentar de alguma maneira pensar e fazer cinema a partir desse desse momento.
CAMÕES: Qual a relevância histórica de Rio Claro para o cinema brasileiro?
JP Miranda: Rio Claro não tinha uma uma tradição cinematográfica. Tinha a figura de Roberto Palmari, que era um cineasta e que não era rio-clarense, ele era do sul, e que morou em Rio Claro e que foi um dos idealistas. O Centro Cultural leva o nome dele. Ele também queria fazer uma escola de cinema, mas que isso acabou não acontecendo. Ele foi um cineasta conhecido desse cinema quase marginal, a gente pode dizer assim.

CAMÕES: O brasileiro tem aversão do cinema nacional? Quais motivos que nos levam a consumir só filmes americanos e estrangeiros?
JP Miranda: Olha, essa aversão, a filmes nacionais, é um tabu, um mito que é falado há muito tempo, não só o cinema, né? Eu vejo que o brasileiro tem muito a essa coisa de vira-lata. De não considerar o que é feito no Brasil, não valorizar o que é feito no Brasil. Então, ao mesmo tempo, quase uma falta de patriotismo, digamos assim, mas eu vejo que vai também além, isso aí não é uma coisa brasileira, né? Estou na França, e eu vejo quanto o cinema americano, digamos, invade aqui, os circuitos comerciais de cinema, televisão. Então, é uma coisa comercial mesmo, é uma lei selvagem do capitalismo. Então, ou seja, em vários países, a grande maioria dos filmes passados nos cinemas, e na televisão são americanos, né? E alguns países fazem de tudo, como na França e vários outros de criarem leis, de valorizar o cinema local, o cinema próprio. E vamos lá, segundo, não adianta você querer imaginar, querer, um filme tipo Star Wars, feito no Brasil, além de uma realidade completamente diferente, mas toda uma questão de que é totalmente diferente, né? Um filme americano, ele está na cifra de centenas de milhões de dólares o custo de um filme. Já no caso de um filme brasileiro, ele num chega a uma dezenas de um milhão de reais. Então, ou seja, inferior.
Então, não dá pra você imaginar que alguém que faça com duzentos, fazer a mesma coisa com um ou com dois. Então, ou seja, é muito mais desleal. Não adianta você querer ver o mesmo tipo de cenas de explosão, de ação no cinema brasileiro. Então, é diferente.
JP Miranda
Quando a gente vai falar do cinema, o cinema também é uma arte, assim como é a pintura, por exemplo, e eu sei que as vezes não é fácil uma pessoa, um jovem olhar para uma pintura e saber o real valor dela. Então, também demanda uma cultura, um conhecimento. Então, quando o jovem ou a pessoa, o público tem um mínimo conhecimento cultural e de educação de história da arte e tal, ele vai saber diferenciar um bom filme de um mau filme. E não vai ser uma questão da produção de efeitos especiais que vai fazer a pessoa mudar de ideia. Então, esse é o meu ponto.
CAMÕES: Qual o papel do cinema (cultural e intelectual) na formação dos brasileiros do futuro?
JP Miranda: Vejo que o cinema ele precisa muito se engajar, e isso eu falo qualquer arte desde pintura, escultura, teatro, música. Eu vejo que o artista, antes de qualquer coisa, é uma pessoa que tem uma sensibilidade extrema de visão de futuro, de visão de coisas que podem acontecer, coisas que estão entrando para acontecer em nossa sociedade e para levantar conflitos, problemas. Não existe uma boa arte se não existir também um bom questionamento, um conflito a ser evidenciado e a ser discutido, também não podemos esperar que o artista vá trazer as respostas, mas, ele traz luz a certos problemas e certas questões e dilemas que a nossa sociedade tem que enfrentar, então a arte tem essa questão de engajamento.
CAMÕES: Qual recado você deixa aos alunos das escolas públicas de Rio Claro?
JP Miranda: O recado que eu daria, assim como falei no começo sobre essa coisa do impossível, é realmente, é, indicar para que vocês lutem por seus sonhos. Quanto maior o seu sonho, ou seja quanto mais parecer impossível, melhor é, sabe, não tente pegar atalhos na vida, não dá para pegar atalho, tudo que é bom na vida, pra mim é quando vem depois de muito suor, teve que dar o sangue para chegar até lá, então eu vejo que a recompensa é pela conquista.
Um grande problema que eu vejo, da sociedade, de muita gente, independente se é rico ou pobre, são pessoas que tem os sonhos medíocre no sentido de que pensa pequeno. Mesmo que a pessoa seja um jardineiro, ela vai ter que imaginar/pensar que vai fazer um jardim mais incrível que possa fazer. Ela vai se doar de uma maneira incrível, e pode parecer dos olhos da pessoa, um jardim simples, mas a pessoa, ela se dedicou de coração a fazer algo realmente com amor e realmente com vontade procurando uma vocação.
JP Miranda
Eu vejo que não tem como essa pessoa não se sentir realizada. Então ou seja, quando eu falo medíocre, não é nem o a posição, não é o tipo de trabalho, ou tipo de profissão, mas realmente desejar ser o melhor possível, né? E, eu vejo que atingiu um alto nível de qualidade, eu vejo que o melhor da vida não é em quantidade é em qualidade. Se os mais jovens poderem perceber que o que vale a pena na vida não é a quantidade, mas é a qualidade, qualidade da vida… Não é o tamanho da sua casa, se ela é grande, se é uma mansão, mas é a qualidade da vida, dentro da sua casa, qualidade dentro da vida ali na sua família, qualidade de vida na sua profissão que você vai escolher em ser. Então, eu vejo que a busca pela qualidade é o mais elevado possível, independente do que você escolha, espero que muitos e que a maioria conquiste os seus sonhos.
Confira a entrevista pelo “videocast”:
Reportagem: Kauhan Sabino, Guinter Samuel, Pedro Leonardo, Alice do Espírito Santo, Julia Bueno e Antonio Archangelo.
Um comentário em ““O problema não é apenas o racismo, mas a intolerância”, diz cineasta brasileiro premiado em Cannes”